domingo, 14 de agosto de 2011

RELATÓRIO DA ONU SOBRE TORTURA NO BRASIL

ONU visita Brasil para avaliar situação de tortura e maus-tratos no país

presídio

O Subcomitê para a Prevenção da Tortura (SPT) da ONU virá ao Brasil em breve para a sua primeira visita periódica ao país. O grupo monitorará a situação da tortura e maus-tratos em unidades de privação de liberdade, como prevê o Protocolo Facultativo da Convenção da ONU contra a Tortura (OPCAT), do qual o Brasil é parte desde 2007.
Delegacias, prisões, centros de detenção, instituições de assistência social, hospitais de custódia e tratamento, unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei são alguns dos locais que o SPT visitará.
De acordo com dados do Infopen, o Brasil enfrenta as graves conseqüências da política de encarceramento em massa. Desde 2005 a taxa de encarceramento brasileira aumentou 35%, já tendo chegado a mais de meio milhão de pessoas presas. Unidades de privação de liberdade superlotadas geram condições para que a tortura e os maus-tratos aconteçam cotidianamente.
Vários mecanismos de direitos humanos da ONU têm afirmado que no Brasil a tortura é “generalizada e sistemática”1. O governo brasileiro admite a existência da tortura e sua gravidade2. Admite também sua própria falha na produção de dados estatísticos sistematizados sobre a tortura nas unidades de privação de liberdade que permitam dimensionar a prática e adotar medidas eficazes de enfrentamento3.
A persistência da tortura no Brasil é uma consequência direta da ausência de políticas efetivas de prevenção e principalmente da falta de responsabilização dos perpetradores.
A visita do SPT e suas recomendações
Justiça Global e Conectas Direitos Humanos, em parceria com outras organizações brasileiras, têm colaborado com o SPT na preparação da visita com informações a respeito de casos de tortura e maus-tratos no sistema penitenciário e em outros locais de detenção, como as unidades do sistema socioeducativo. Em maio de 2011, as organizações se reuniram com os membros do SPT em Brasília e no Rio de Janeiro durante uma visita preparatória.
No seu relatório final, o SPT recomendará ao Estado brasileiro medidas de prevenção e combate à prática de tortura no país, além de melhorias nas condições de detenção. Justiça Global e Conectas ressaltam a importância de o SPT incluir em suas recomendações as seguintes medidas prioritárias:
Criação do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, além da criação de mecanismos estaduais
Segundo o Protocolo Facultativo, o Brasil deveria ter criado o mecanismo nacional em 2008, um ano após a ratificação do documento4. Recentemente, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, disse que a sua implementação é uma de suas prioridades e que enviará ainda neste ano o projeto de lei. O Protocolo faculta a criação de mecanismos estaduais, que no caso brasileiro já foram estabelecidos em três estados, Alagoas5, Paraíba6 e Rio de Janeiro7. A Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo está estudando um projeto de criação de um mecanismo estadual elaborado pela Defensoria Pública junto com organizações da sociedade civil.
Fortalecimento da Defensoria Pública, especialmente com a presença constante de defensores em locais de detenção
A presença de defensores nesses locais seria um meio importante de prevenção e combate à tortura e garantia de atendimento jurídico aos presos. Uma das causas da tortura no país é a não responsabilização dos acusados de cometer este tipo de crime. Um dos elementos que comprometem este processo é justamente as dificuldades que enfrentam as vítimas ao denunciar a tortura e na sua apuração. A presença da Defensoria Pública atuaria diretamente nesta fase, acionando as autoridades competentes nos casos de cometimento de crimes de tortura nas unidades prisionais.
Neste sentido, o estado de São Paulo enfrenta um problema particularmente sério, já que são apenas 35 defensores responsáveis pelo atendimento jurídico em todo o sistema prisional paulista que compreende mais de 170 mil presos(INFOPEN).
Independência dos órgãos responsáveis por realização de laudos médicos e periciais (Institutos e Departamentos Médicos-Legais) da estrutura institucional das polícias8
Sem uma pericia medica confiável, resulta impossível provar a tortura. Sendo estes órgãos vinculados à estrutura da própria polícia, a independência na apuração de crimes supostamente cometidos por policiais, como a tortura, fica comprometida9. O Relator da ONU contra a Tortura (no ano 2000) e o Comitê da ONU contra a Tortura (em 2009) recomendaram que os médicos sejam treinados para identificar lesões características da tortura e que os órgãos médicos sejam independentes, em particular de independentes de toda a estrutura policial.
Fim da revista vexatória dos familiares de presos
Para tal, as organizações recomendam a aprovação de uma lei federal que inclua: (i) proibição da revista íntima de visitantes e presos; (ii) proibição de revista manual e obrigatoriedade da revista com uso de equipamentos eletrônicos para visitantes; (iii) autorização da revista manual apenas em caso de fundada suspeita de que o visitante traga consigo elementos cuja entrada seja proibida e/ou exponha a risco a segurança do estabelecimento prisional; (iv) a fundada suspeita deverá ter caráter objetivo e ser registrada pela administração em livro próprio, assinado pelo revistado, testemunhas e pelo funcionário; (v) fornecimento ao visitante de declaração escrita sobre os motivos objetivos que justifiquem a revista manual, dando-lhe a opção de recusar a se submeter ao procedimento se desistir de realizar a visita
Dos 11 países já visitados pelo SPT, 5 deles tornaram as recomendações públicas. Esperamos que o Brasil siga esta prática de transparência.
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Notas
1 ONU, Comitê contra a Tortura. “Report on Brazil produced by the Committee under art. 20 of the Convention”, Documento CAT/C/39/2, parágrafo 178 (no original “torture and similar ill-treatment continues to be meted out on a widespread and systematic basis”).
2 No relatório nacional apresentado pelo Brasil durante o primeiro ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2008, o governo reconheceu a prática da tortura e sua gravidade (parágrafo 51). Documento ONU, A/HRC/WG.6/1/BRA/1, 7 de março de 2008, disponível em http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/UPR/PAGES/BRSession1.aspx.
3 “El Gobierno brasileño reconoce la gravedad de esta situación. El problema es difícil de abordar y el primer obstáculo es la falta de bases estadísticas en todo el país que permitan cuantificar los acontecimientos de una manera precisa” (Idem, parágrafo 52).
4 No relatório nacional apresentado na Revisão Periódica Universal, descrito acima (nota 1), o Brasil demonstrou preocupação com o tema e indicou que atuava para a implementação do Mecanismo Nacional (parágrafo 55, item 3.9), porém esta obrigação não foi cumprida até agora.
5 Lei nº 7.141/2009
6 Lei nº 9.413/2011
7 Lei nº 5.778/2010
8 O Relator contra Tortura da ONU, Nigel Rodley, quando visitou o Brasil em 2001, também recomendou que os institutos e departamentos médicos-legais estejam sob autoridade independente e não sob a autoridade da polícia. O relatório dessa visita se encontra na íntegra disponível em http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G01/123/23/PDF/G0112323.pdf?OpenElement.
9 O Brasil reconheceu este problema no relatório nacional apresentado na Revisão Periódica Universal (parágrafo 56). Além disso, organizações da sociedade civil denunciaram esse problema ao CAT (parágrafo 51, p. 18 do relatório do CAT).
Comitê Internacional de Combate a Tortura da ONU (Organização das Nações Unidas), aponta que a prática é comum e sistemática nas cadeias brasileiras e que presos negros e mulatos são mais vulneráveis aos problemas do sistema prisional do país. O documento de 80 páginas ressalta que, apesar da prática da tortura ser registrada em vários centros de detenção do Brasil, raramente os policiais que abusam dos presos são considerados culpados. "Dezenas de milhares de pessoas são ainda mantidas em delegacias e em outros locais no sistema prisional onde a tortura e maus-tratos similares continuam a "ocorrer de forma disseminada e sistemática'", diz o comitê em suas conclusões. A ONU diz que os presos também sofrem com a situação precária dos centros de detenção o que "causa danos físicos e psicológicos irreparáveis nos detentos", e que a ameaça constante de rebeliões nos presídios é "resultado direto das condições precárias". "O Comitê, em várias ocasiões, recebeu alegações sobre a natureza discriminatória dessas condições, visto que elas afetam grupos vulneráveis, em particular pessoas de descendência africana."

Superpopulação - O documento foi escrito em 2006 por um grupo de especialistas da ONU e seu conteúdo é baseado em registros de uma visita feita por dois peritos a prisões brasileiras entre os dias 13 e 29 de julho de 2005. Os peritos, entre eles o presidente do Comitê, Fernando Mariño Menendez, visitaram 28 centros carcerários e delegacias nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e no Distrito Federal. Segundo o relatório, os peritos encontraram "uma superpopulação endêmica, condições esquálidas, calor insuportável, falta de luz e confinamento permanente (...) assim como um nível generalizado de violência e falta de supervisão adequada, o que leva à impunidade". Em entrevista à BBC Brasil, o ministro-chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, contestou a afirmação do relatório. "Não posso aceitar isso, porque certamente deve haver algumas prisões onde não há superlotação", afirmou.
O documento alerta que a busca de soluções alternativas para a aglomeração dos presos "deve ser tratada como extrema urgência pelo governo brasileiro" e que, enquanto o problema não for resolvido, "o Estado será responsável por tolerar as condições desumanas encontradas em muitos centros de detenção". Para o Comitê, uma das causas da superlotação nos presídios é a imposição de penas longas e mais duras que o necessário, além da falta de sentenças alternativas, como trabalho comunitário e suspensão de direitos. "Há uma pressão e exigência da sociedade e dos políticos para que todos os criminosos recebam penalidades duras e permaneçam nos centros de detenção, distantes do público", diz o documento. Apesar das críticas, o relatório aponta que o governo fez investimentos para melhorar a situação dos presídios. Dados contidos no documento indicam que, em 2006, foram investidos R$ 75,5 milhões para a mudança de equipamento nos centros penais. Além disso, o relatório também destaca os esforços do governo para expandir o sistema penitenciário do país. Segundo o documento, em 2006, o governo investiu R$ 170 milhões para criar 7.720 novos centros de detenção.

Impunidade - Outro ponto destacado pelo relatório do Comitê é a falta de eficácia das investigações policias nos casos de suspeita de tortura ou maus-tratos. Entrevistas feitas pelos peritos com detidos em vários centros de detenção revelam que os presos reclamam da lentidão com que os processos de denúncia de tortura são tratados e que os torturadores raramente são considerados culpados. O relatório explica que "a natureza corporativa das corregedorias implica que os policiais não estão dispostos a investigarem os próprios colegas".
O documento recomenda 16 medidas que o governo brasileiro deve tomar nos casos de tortura envolvendo policiais. Entre elas, o relatório aconselha que as denúncias de abuso devam ser tratadas rapidamente e que as investigações devem ser feitas de forma imparcial, em órgãos criados especialmente para este fim. A visita do Comitê ao Brasil em 2005 foi conseqüência de uma denúncia feita pela ONG ACAT Brasil (Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura) em 2002. Na ocasião, a ONG apresentou uma extensa documentação sobre a prática da tortura no Brasil e pedia um exame do Comitê sobre a situação no país. O governo brasileiro pediu duas vezes o adiamento da visita ao Comitê, pois não havia tempo para preparar um programa adequado aos peritos. Somente em 2005 o governo brasileiro concordou com a visita dos especialistas da ONU. A versão definitiva do relatório deve ser divulgada no final desta sexta-feira, no encerramento do Encontro Anual do Comitê das Nações Unidas contra a Tortura, que acontece em Genebra.

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